terça-feira, dezembro 18

Estrageirismos 1

Uma piada de Português
Prof.José Ribamar Bessa Freire

16/12/2007 - Diário do Amazonas


Quinta-feira, 13 de dezembro. Hora do almoço. ‘Malandro Carioca’, chofer da camionete chapa branca, pára na garagem do hotel. Desce o deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP), trajando paletó azul e gravata vermelha. Encontra seu irmão caçula no restaurante. O garçom traz o menu. Alisando seu bigode, Aldo pede bife de filé no capricho, com purê de batata e, de entrada, salada de maionese com tomate e azeitona. Enquanto come, discute a guerra da CPMF e a crise política. No final, com um brinde, festeja a aprovação do projeto de lei contra os estrangeirismos.
O projeto de sua autoria proíbe o uso nos documentos oficiais de palavras estrangeiras importadas, sem especificar o momento histórico da importação. Obriga mídia e outdoors (perdão, painéis) a traduzir, para o português, vocábulos de outras línguas. Determina que especialistas inventem palavras novas em português equivalentes a expressões estrangeiras usadas em áreas de inovação tecnológica. Os infratores serão punidos, mas ainda não se sabe como. Aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), o projeto volta agora ao Plenário da Câmara para votação final.
O deputado Aldo Rebelo vai transformar o cotidiano dos brasileiros num inferno, se o seu projeto for mesmo levado a sério. Ele próprio - coitado! - não vai mais poder andar de carro, comer, falar, beber, se vestir, ou alisar seus bigodes impunemente, porque o português está repleto até o tucupi de estrangeirismos, a maioria dos quais o falante comum nem imagina quando e de onde vem. Uma análise superficial do parágrafo inicial mostra que 95% do relato do almoço de Aldo fica proibido. Quer ver? Olha só!
As palavras restaurante, garçom, menu, filé, maionese e purê foram roubadas do francês que, como todo mundo sabe, adora comer e beber e, além disso, exportou para nós milhares de galicismos como chofer, camionete, garagem, hotel, paletó, conhaque e champanhe. Aldo não pode comer nada disso, muito menos a batata cultivada em chácara, duas palavras quechuas. Salada de tomate, nem pensar, é vocábulo nahuátl do México, tanto quanto chocolate. Bife é inglês e, se for no capricho, é coisa de italiano. Azeitona é árabe. Nem suco de abacaxi ou caju - palavras tupis - ele poderá beber.
O deputado, já faminto e com sede, encontra também dificuldades em se vestir. Coerente com a defesa da língua portuguesa, tira o paletó, mas não pode substituí-lo por short, jeans e tênis comprados no shopping, porque são anglicismos. Não pode ficar de camisa, porque se trata de uma palavra celta. A gravata vermelha está proibida: vermell foi importado em 1380 do Oriente Médio por marinheiros catalães. E gravata vem de crovatta, denominação dada pelos italianos aos croatas, inventores da dita cuja.
Desesperado, Aldo procura uma roupa alternativa costurada artesanalmente, mas descobre que alfaiate é estrangeirismo, um empréstimo do árabe, de onde também vem a cor azul do seu terno e vocábulos como almofada, xadrez, tarefa, laranja, guitarra e tantos outros. O deputado, então, só tem uma saída para manter sua fidelidade à pureza da língua portuguesa: ficar nuzão como os índios Tupi.
Nu, faminto, desesperado e com sede, Aldo tenta conversar com o irmão, mas omite sua condição de caçula, estrangeirismo proveniente de língua africana igual a milhares de outros como vatapá, samba, cafuné, bagunça, moleque, bunda. Não pode discutir política, nem expor sua tese sobre a crise, porque são três termos gregos. Não pode falar da guerra (werra), nem mesmo fazer um brinde (bring dir´s - eu te ofereço), que são germanismos. Aldo, então, é obrigado a ficar mudo como o ex-deputado amazonense Lupércio Ramos ficou durante todo seu mandato.
Mudo, nu, faminto e com sede, o autor do projeto, contrariando a doutrina social que professa, demite seu motorista, por não poder chamá-lo pelo apelido: Malandro é um italianismo como festejar e carnaval. Já a palavra Carioca, de origem tupi, foi incorporada com milhares de outras ao português do Brasil. Aldo, finalmente, cofia o bigode, mas é advertido que alisar é um termo de língua celta e bigode vem do alemão (bei got - por Deus). Por Deus, Aldo raspa seu bigode. Tudo pela pureza do português!
Desbigotado, nu, mudo, faminto e com sede, Aldo Rebelo só pode ser salvo pelos especialistas que vão criar palavras novas e puras, em português legítimo e autêntico. Sua última esperança morre, no entanto, quando lê o relatório produzido por eles sobre o Campeonato Brasileiro de Pé-na-bola, o esporte nacional, que inclusive exporta pebolistas. No campeonato de 2007, Romário enfiou a redonda na balisa, por baixo das pernas do guarda-valas, fazendo mil objetivos, muitos dos quais de tiro-livre.



O deputado Aldo Rebelo, parlamentar combativo e honesto, pertence a um Partido de luta. No entanto, está mal assessorado nessa questão. Sua intenção é boa, mas a proposta é xenófoba, inoportuna e inexequível, três palavras horrorosas, banidas de sua cartilha. O português, como qualquer língua viva, tem uma história de contato com dezenas de outras línguas. Emprestou e tomou emprestado milhares de palavras, sem pagar ou cobrar juros e sem ter de pagar os serviços da dívida.
Não existe nenhuma língua do mundo sem influência estrangeira. Mais de 50% das palavras em inglês, por exemplo, vieram do francês. Tudo bem, é ridículo o Berinho, Secretário Estadual de Cultura do Amazonas, colocar títulos em inglês ao festival de cinema que realiza com o dinheiro do contribuinte. Mas não é isso que enfraquece a língua portuguesa, que não precisa de defesa. Se esses estrangeirismos se impuserem pelo uso e forem incorporados ao português, qual é o problema? A língua não vai deixar de ser portuguesa, por causa de palavras importadas. Ela pertence aos falantes e eles fazem com ela o que bem entendem.
O que se deve defender é outra coisa. No mesmo dia e hora em que a CCJ aprovava o tal projeto, a Comissão de Educação e Cultura, indo num sentido contrário, se reunia em outro corredor da Câmara de Deputados, em Brasília, para discutir relatório sobre a Diversidade Lingüística do Brasil, onde são falados mais de 200 idiomas. Tive a sorte de estar presente. Fiquei emocionado, com a sensação de estar testemunhando momento importante na história do país. O deputado Carlos Abicalil (PT/MT), assessorado por técnicos do IPHAN e linguistas, fez trabalho tão brilhante, que pensei em mudar meu domicílio eleitoral só para votar nele.
O relatório considera que a diversidade lingüística é um patrimônio da humanidade, que deve ser - esse sim - defendido com unhas e dentes. No Brasil, essa riqueza toda é representada pelas línguas indígenas, pelas línguas das comunidades afro-brasileiras e dos imigrantes estrangeiros, pela Língua de Sinais (LIBRAS), mas também pelas variedades dialetais da língua portuguesa. O IPHAN, que vai fazer um inventário desses falares, propôs a criação do Livro de Registro das Línguas para garantir o direito dos falantes e a diversidade lingüística do país.
Durante o evento, a representante da Unesco, Jurema Machado, anunciou que aquela instituição havia escolhido 2008 para ser o ano da diversidade lingüística, enquanto era distribuida cópia do Diário Oficial da União de 12 de dezembro, contendo texto do acordo de cooperação entre a FUNAI e a OPIPAM - Organização do Povo Indígena Parintintin do Amazonas. O documento foi publicado em português e em língua Kagwahiva. É a primeira vez que isso ocorre na história do Brasil. Policarpo Quaresma, com "seu eterno sonhar, sua ternura e sua candura de donzela romântica", não estava doido. Agora, ninguém mais vai rir dos ofícios que ele escreveu em tupi. P.S. - Agradeço Joan Corominas, autor do Dicionário Etimológico, pelas informações sobre a origem das palavras.

Um comentário:

SANDRA CATARINA MARTINS BOARETTO disse...

Olá

Simplismente só tenho uma coisa a dizer: Infelizmente o Brasil é semelhante a uma grande avenida, bonita, arborizada, com bancos para que todos se sentem, mas, com o seguinte problema, um enorme canteiro, que divide essas duas vias, uns vão, outros vêm. Ninguém se encontra, ninguém se cumprimenta.
Acredito que tudo isso lembra o que vivemos hoje, enquanto uns lutam por X, outros lutam por Y e ninguém chega a lugar algum.
Somente se discute, o que é supérfluo, o que é vazio, mas ninguém discute a realidade do país, as suas verdadeiras necessidades e pior ainda somos nós que continuamos dizendo sim para todo esse circo.

Adorei o seu blog, precisamos de verdadeiras reflexões.

Parabéns

Visite o meu blog, ficarei muito feliz: www.educrianca.blogspot.com